Desde 2002, o Brasil está modernizando a forma de lidar com pagamentos bancários , cujas regras encontram-se delineadas em normas federais e, especificamente, do Banco Central do Brasil, por meio da Resolução 2.882/2001.

Em abril de 2002, o Banco Central editou a Circular nº 3.115/2002 instituindo a TED (Transferência Eletrônica Disponível), que permitiu que as transferências entre bancos fossem concluídas no mesmo dia, ao mesmo tempo em que restringiu o uso de cheque.  Essa restrição foi ainda mais acentuada pelas Instituições e Contas de Pagamento normatizadas na Lei nº 12.865/2013, estabelecendo o  regime jurídico básico das instituições de pagamento.

A partir de fevereiro e março de 2020, com as medidas de emergência de saúde e de calamidade públicas por conta da covid-19 no Brasil, a população brasileira foi obrigada a aprender a lidar com as restrições de circulação, intensificando o uso de aplicativos financeiros e internet banking.

Com a Resolução nº1, de 12 de agosto de 2020, a Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil instituiu o arranjo de pagamentos Pix. Alguns dias depois, no dia 20, editou a Portaria nº 108.092, criando, naquela instituição, o chamado Grupo de Trabalho Interdepartamental (GTI), para “realizar estudo sobre emissão de moeda digital pelo Banco Central do Brasil”.

Nesse cenário, em maio de 2021, como resultado do mencionado Grupo de Trabalho (GTI), o Banco Central do Brasil divulgou as diretrizes da moeda digital, que passou a ser conhecida como o “Real Digital”. Em outubro de 2021, a Audiência Pública Extraordinária em comissão específica na Câmara dos Deputados foi realizada, tendo o Banco Central manifestado entendimento de que a Lei nº 4.595/64, reguladora do sistema financeiro nacional, deveria ser alterada para garantir  segurança jurídica à moeda digital e abordar questões relacionadas à  privacidade de dados pessoais e sigilo bancário.

De fato, a Lei nº 4.595/64 confere ao Banco Central autoridade exclusiva  para emitir  moeda-papel e moeda metálica, razão pela qual se justifica uma atualização legislativa nesse aspecto, na medida em que os meios de pagamento e de circulação financeira já se encontram em um contexto digital. Nessa linha, já estão em tramitação dois projetos de lei complementares, ora convergentes, tanto na Câmara dos Deputados (PLC nº9/22) como no Senado Federal (PLC nº80/23). Ambos os projetos abordam de maneira clara e enfática  os seguintes pontos:

(i)  Necessidade de alteração da Lei nº 4.595/64 para que seja concedida autorização legislativa no tocante a evolução tecnológica (emissão moedas no formato digital);

(ii)   Vedação ao Banco Central do Brasil oferecer diretamente consumidor créditos, produtos e serviços bancários, de pagamentos ou de investimentos financeiros;

(iii) Atribuição de responsabilidade objetiva e solidária para reparar danos decorrentes de falhas operacionais – segurança cibernética e de violações à legislação de proteção de dados pessoais;

(iv) Os serviços para pessoas naturais decorrentes das inovações regulatórias relativas à moeda digital emitida pelo Banco Central sujeitam-se ao Código de Defesa do Consumidor.

Nesse ambiente digital, alguns conceitos são necessários: (i) Moedas digitais emitidas pelos bancos centrais (Central Bank Digital Currencies - CBDC); (ii) Projeto Piloto Nacional, segregado em (ii.i) Real Digital no Atacado (Whole Sale CBDC) e (ii.ii) Real Toquenizado no Varejo (Retail CBDC).

Primeiramente, a CBDC é a versão digital do papel moeda emitida pelo Banco Central ou na forma digitalizada da moeda fiduciária nacional.

Em relação ao Brasil, atualmente, o funcionamento do sistema monetário nacional estabelece  que o cidadão comum, famílias, empresas e comércios somente têm acesso ao Banco Central pelo que se chama de meio circulante, isto é, o papel moeda ou dinheiro em espécie. Por outro lado, os bancos comerciais são as únicas instituições que têm acesso direto ao Banco Central por meio de contas bancárias, chamadas de reservas bancárias, ou contas eletrônicas, consistindo no Real Digital no Atacado.

A ideia de digitalizar o dinheiro em espécie representa  uma verdadeira transformação na forma como o sistema monetário funciona, na medida em que pode mudar radicalmente a própria intermediação financeira e a expansão do crédito pelos bancos. Em tese, em uma CBDC genuína, o cidadão possui relacionamento (dinheiro digital) diretamente no Banco Central. Isso significa que as implicações e riscos à privacidade e a sua liberdade individual se agravam, dado o rastreamento  ilimitado das transações e, consequentemente, de seus dados.

Já a proposta do Real Digital é notadamente relacionada ao sistema financeiro digital, por meio de uma plataforma de transações financeiras com liquidação em tempo real na moeda nacional ou infraestrutura de “tokenização” de ativos, com a utilização de uma rede privada diferentemente da blockchain (rede pública não permissionada): a DLT (Distributed Technology Ledger) – Tecnologia de Registro Distribuído Permissionada – ou seja, rede privada na qual é necessária autorização prévia para o acesso: HIPER LEDGER BESU (tecnologia com foco corporativo).

Em termos de projeto, na plataforma DREX, teremos (i) o Real Digital negociado exclusivamente entre os bancos/agentes autorizados (já em funcionamento); e (ii) o Real “Tokenizado” (os depósitos de hoje teriam o formato digitalizado) – abrangendo tanto os depósitos bancários à vista como contas em diferentes instituições de pagamentos. Porém, alinhados em infraestrutura uniforme que permita liquidação em tempo real de todas as transações, não necessitando que sejam certificadas, tornando-a mais ágil, praticamente como operações instantâneas.

Assim, no contexto brasileiro, mesmo sem edição de lei sobre a CBDC e considerando as  disposições atuais da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), pode-se dizer que há vários mecanismos legais  que possibilitariam a introdução da CBDC no Brasil, sem violar as disposições de proteção aos dados pessoais. O primeiro deles seria exigir do usuário da moeda digital a assinatura de termo autorizando o tratamento dos seus dados pelas entidades cuja atuação fosse necessária.

Nesse sentido, é possível sustentar, também e com maior razão, que considera-se autorizado o tratamento dos dados necessários às operações com moedas digitais emitidas por Bancos Centrais:  (i) por estar respaldado no cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador (artigo 7º, inciso II, da LGPD), ou (ii) porque o tratamento está sendo realizado pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em lei (artigo 7º, inciso III, da LGPD).

O Banco Central do Brasil é uma autarquia federal autônoma, o que significa que tem autonomia perante a outros órgãos do poder público. Ou seja, ele não está subordinado a nenhum outro órgão, mas opera com a supervisão do Governo Federal e está ligado ao Ministério da Economia.

Mediante à instituição de plataforma única, o DREX trará benefícios, como, por exemplo, o aprimoramento de compra e venda de imóveis, já que a moeda digital brasileira “tokenizará” os bens físicos, criando não só acordos autoexecutáveis como vinculando entidades diversas.

Nesse contexto, o Provimento 47/2015 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ prevê a instituição do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônicos. Logo, o objetivo do DREX consiste em promover a comunicação (interoperabilidade) entre os sistemas, diminuindo a sua assimetria e o gasto , pois atualmente estão desconectados (sistema bancário e serventia na qual está a matrícula do imóvel), de modo que as partes dessa relação de compra e venda não mais precisarão se deslocar junto ao Banco, à serventia.

Para isso , será utilizado  smart contracts (contratos inteligentes) invioláveis e autoexecutáveis. Em outras palavras,  se uma das partes não cumprir uma obrigação estabelecida  em contrato, o sistema bloqueia o processo automaticamente e só desbloqueia quando o item descumprido for regularizado.

Por fim, salienta-se que apesar de o piloto do Real Digital ter sido adiado por inúmeras vezes, seja em virtude do receio em relação aos bancos de varejo, ou quanto à privacidade do cidadão, a intenção de implantação visando a interoperabilidade e homogeneidade entre os sistemas mitigará inúmeras certificações atualmente necessárias, viabilizando diferentes transações instantaneamente.

Por outro lado, não se pode desconsiderar o respeito à privacidade e inviolabilidade de dados sensíveis, não obstante não se enquadre o DREX como uma clássica moeda digital emitida por um banco central.

 

Carolina Cunha 

carolinacunha@mandaliti.com.br