No final de 2023, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 1.202, em destaque pela mídia. Esta medida estabelece limites para a compensação de créditos tributários provenientes de decisões judiciais finalizadas, que ultrapassem o montante de 10 milhões de reais. De acordo com a posição do Governo, a intenção é reduzir os impactos na arrecadação decorrentes  dos  créditos tributários vinculados à conhecida tese do século, envolvendo a Exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e COFINS, na qual os contribuintes saíram vitoriosos contra a Fazenda Nacional.

Em decorrência da Medida Provisória, o Ministério da Fazenda publicou a Portaria nº 14, datada de 05 de janeiro de 2024. Esta portaria estabelece os parâmetros de  limitação mensal na compensação dos créditos superiores a 10 milhões de reais. O uso desses créditos será dividido em períodos  mínimos que variam de 12 até 60 meses, conforme as faixas de valores especificadas na referida Portaria.

Em resumo, se um contribuinte possuir um crédito tributário superior a 10 milhões de reais, não poderá utilizá-lo integralmente de imediato, de acordo com suas necessidades. Em vez disso, estará sujeito a uma compensação fracionada, determinada pelo Governo Federal por meio da MP nº 1.202/2023. Essa medida estabelece uma limitação na compensação, assemelhando-se a um parcelamento para reembolso do valor, justificado  pelo impacto nas contas públicas.

É fundamental esclarecer que quando um contribuinte, por meio do Poder Judiciário, obtém o direito de compensar tributos pagos indevidamente ou recolhidos a mais, significa que valores que foram transferidos aos cofres públicos não pertencem ao Governo, mas sim ao particular. Isso decorre do disposto no Código Tributário Nacional, conforme o artigo 3º, que define o tributo como obrigação de pagamento em dinheiro, estabelecida por lei e cobrada mediante atividade vinculada à legislação vigente.

Certamente, é crucial esclarecer que quando o Poder Judiciário reconhece que um imposto foi cobrado de maneira ilegal do contribuinte, automaticamente nasce o direito de restituição. Este esclarecimento é importante, pois o Governo procura criar a percepção de que os substanciais créditos dos contribuintes prejudicarão as receitas públicas. No entanto, ao analisar de outra perspectiva, percebemos que, na realidade, os contribuintes também sofreram impactos econômicos em suas atividades devido a tributações ilegais. Isso é especialmente relevante ao considerar o período prolongado sem a disponibilidade dos recursos, além do fato de que o Brasil possui uma das maiores cargas tributárias do mundo. 

Conclui-se que, quando o Estado cobra tributos, busca a integralidade do montante, acrescido de multas e juros. No entanto, ao reconhecer a ilegalidade de uma determinada exigência e o dever de ressarcir, adota unilateralmente a prática de limitar e parcelar essa devolução. Isso parece justo? Quando o contribuinte é acionado para pagar determinado tributo ele pode alegar que tal cobrança acarretará impactos econômicos em suas  atividades? Obviamente as respostas para esses questionamentos são negativas, destacando a dura realidade enfrentada pelos contribuintes brasileiros .

Nesse contexto, é possível interpretar que a restrição da compensação poderia caracterizar a imposição de um empréstimo compulsório, conforme previsto no artigo 148 da Constituição Federal de 1988. Isso se deve ao argumento apresentado na Medida Provisória nº 1.202/2023, que indica que as quantias devidas aos contribuintes serão destinadas a outras finalidades. No entanto, é crucial observar que a instituição do empréstimo compulsório exige uma finalidade específica de urgência, como um estado de calamidade ou guerra. Além disso, tal medida deve ser estabelecida por meio de lei complementar.

No atual ordenamento jurídico e mesmo na jurisprudência dos Tribunais, não há respaldo para a imposição de limites e valores fixados pelo Governo. Embora o artigo 170 do Código Tributário Nacional preveja que a lei pode estipular condições e garantias para a compensação, isso está relacionado apenas com requisitos mínimos para a solicitação de compensação, como é o caso da obrigatoriedade de habilitação prévia na Receita Federal dos créditos reconhecidos em juízo. Contudo, em nenhum momento o CTN autoriza que seja estipulada limitação quantitativa dos créditos a serem compensados.

Isso porque, caso o legislador tivesse adotado tal abordagem, automaticamente estaria desconsiderando a essência do instituto da compensação, no qual ambas as partes são credoras e devedoras mutuamente. Ao limitar unilateralmente o crédito do contribuinte, o Fisco, de maneira evidente, restringe o débito que possui com o particular, invadindo assim a esfera da relação jurídica de direito material já analisada pelo Poder Judiciário. Em resumo, a Medida Provisória nº 1.202/2023 introduz uma distorção ao próprio instituto jurídico da compensação.

Outro ponto de discussão jurídica já suscitado diz respeito à possibilidade de a Medida Provisória ter efeitos retroativos para contribuintes que possuem ações com trânsito em julgado anteriores à sua edição.

Atribuir efeitos retroativos para à Medida Provisória, abrangendo ações com trânsito em julgado implica em ignorar garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, quais sejam, o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e a coisa julgada, previstos no art. 5º, XXXVI, da CF de 1988. Isso se deve ao fato de que os contribuintes com créditos reconhecidos em ações transitadas em julgado já contam com a utilização integral desses valores em seu planejamento empresarial, considerando a operação da empresa e o passivo fiscal apurado. A súbita limitação dos valores representa, portanto, uma afronta ao direito adquirido conquistado e à executoriedade do título judicial transitado em julgado.  

Resumindo, não há fundamento legal que justifique a limitação quantitativa de compensação estabelecida pelo Governo Federal, tampouco qualquer respaldo para sua aplicação retroativa. O Fisco Federal fundamenta-se unicamente em argumentos de cunho financeiro, desprovidos de amparo  nas normas vigentes. Isso inevitavelmente resultará em conflitos judiciais entre os contribuintes e o Governo, representando  um verdadeiro  retrocesso do país.

A MP nº 1.202/2023 será submetida à análise do  Congresso Nacional para eventual conversão em lei, com um prazo máximo de 120 dias para esse processo. Enquanto isso, permaneceremos atentos aos desdobramentos  dessa discussão, que, sem dúvida, se insere como uma das medidas claramente voltadas para a arrecadação adotadas pelo Governo Federal, visando o reajuste das contas públicas.

Everson Santana                                                               

eversonsantana@mandaliti.com.br