A decretação de estado de calamidade pública pelo Governo Federal, por intermédio do Decreto Legislativo nº 06/2020, tem dado ensejo à constante publicação de atos normativos emergenciais em todas as Unidades da Federação para restringir a circulação de pessoas e produtos, bem como determinar o fechamento do comércio, de modo a afetar, sobremaneira, as relações jurídico-empresariais.

Na medida em que a questão se agrava e as restrições se protraem no tempo, os efeitos da quarentena tornam-se particularmente ameaçadores para as relações contratuais, impactando economicamente as empresas em todos os níveis, sejam elas de pequeno, médio ou grande porte.

É inegável que o estado de anormalidade vivenciado resulta em insegurança e incertezas no campo das obrigações e pode conduzir as empresas (e as pessoas) a uma situação tal que inviabilize o cumprimento de seus contratos, seja em decorrência de eventual impossibilidade econômica, seja até mesmo por impossibilidade de cumprimento da própria obrigação contratada.

Daí porque, ao longo das últimas semanas, o judiciário tem experimentado um crescimento vertiginoso de demandas fundamentadas essencialmente na teoria da imprevisão e que visam à revisão episódica de contratos enquanto perdurarem os efeitos econômicos da pandemia, dado que a situação de calamidade – e efeitos a ela correlatos - tende afetar a lógica do equilíbrio contratual e permitir a sua revisão.

Com efeito, dada a excepcionalidade da qual se reveste, é possível afirmar que a pandemia da COVID-19 ostenta a característica da imprevisibilidade, viabilizando a revisão contratual nos termos do artigo 317 do Código Civil, quando verificada a desproporção da prestação no momento de sua execução, ou seja, se no momento da execução do contrato o seu cumprimento se tornar gravoso ao devedor em relação à lógica prevista no momento da contratação.

Para além da imprevisibilidade, o estado de calamidade decretado em razão da disseminação da COVID-19 pode até mesmo ser entendido como “acontecimento extraordinário”, dando ensejo à resolução do contrato pela onerosidade excessiva (se caracterizada), conforme previsão expressa do 478 do Código Civil, salvo se a outra parte oferecer a modificação contratual.

Os pedidos de revisão contratual formulados nos termos acima, seja com base na teoria da imprevisão, seja com base na onerosidade excessiva têm tido boa aceitação do judiciário que, em dois casos que merecem destaque neste momento (Processo nº 1026645-41.2020.8.26.0100 e Agravo de Instrumento nº 2061905-74.2020.8.26.0000), acabou por intervir nas relações privadas, estabelecendo soluções equitativas e bastante interessantes para recomposição do equilíbrio contratual, sempre com vistas à preservação do contrato.

Nos autos do Processo nº 1026645-41.2020.8.26.0100, o magistrado acolheu pedido de empresa do ramo de alimentação para redução equivalente a 70% (setenta por cento) do aluguel mensal, ficando o referido restaurante obrigado ao pagamento de apenas 30% (trinta por cento) do valor original. A decisão foi objeto de Agravo de Instrumento que ainda pende de julgamento, permanecendo vigente o que foi determinado pelo juiz da causa.

Já no que se refere ao Agravo de Instrumento nº 2061905-74.2020.8.26.0000, o Desembargador Cesar Ciampolini, reformando decisão de primeiro grau, concedeu parcelamento obrigatório de uma dívida oriunda do não pagamento de quotas sociais adquiridas pela agravante do caso, sob o fundamento da teoria da imprevisão. Determinou, então, que o valor equivalente a 3 (três) prestações da dívida – totalizando R$ 15.000,00 (quinze mil reais) – fosse obrigatoriamente parcelado em 10 (dez) prestações mensais.

Entretanto, muito embora a pandemia possa se caracterizar como caso fortuito ou de força maior (artigo 393, CC), ou ainda como evento extraordinário e imprevisível (artigos 317 e 478 do CC), os seus efeitos no contrato não são automáticos. Em outros termos, a decretação do estado de calamidade, por si só, não pode servir de “salvo-conduto” para descumprimento, postergação ou alteração do conteúdo das obrigações, sendo necessário um ajuste expresso entre as partes ou, na sua impossibilidade e existindo provas concretas acerca da impossibilidade de cumprimento da obrigação por conta da pandemia do COVID-19, a intervenção do judiciário, sob pena de violação à boa-fé objetiva.

Diante deste cenário, não apenas considerando as decisões aqui citadas, como também diversas outras produzidas em recentíssimas demandas similares, percebe-se uma boa disposição do judiciário em relação à necessidade de equalização episódica dos contratos como forma de preservar a manutenção das avenças, adotando para tanto, medidas de revisão que, simultaneamente, assegurem o cumprimento dos contratos e evitem um colapso ainda maior da economia brasileira.

Thiago de Miranda Aguilera Campos              Marco Aurélio Franqueira Yamada
thiagocampos@mandaliti.com.br                        marcoyamada@mandaliti.com.br